Rev. Woodson era homem de coração extremamente sensível. Explosivo, sim, porém sentia e chorava fácil com os outros. Naquele momento, ele chorou comigo! Pediu-me que aguardasse uns dias. Cerca de uma semana após aquele diálogo, ele me chamou outra vez ao seu gabinete. Então eu disse a meus colegas: Hoje é o dia de minha despedida do IBEL. Vou sentir muito a falta de vocês. Falei isso à beira do desespero. Ao adentrar o gabinete do diretor, minha surpresa foi chocante. Com muita emoção, com um sorriso largo, ele me disse: “Valter, você já não vai embora! Consegui-lhe uma bolsa para dois anos. O restante deste ano eu mesmo pagarei de meu próprio bolso.” Amei aquele homem; aprendi muito com ele! Ele me passou a ideia de que quem serve a Cristo deve cultivar a solidariedade, a compreensão, a sensibilidade; seu coração tem de ser tangido pelo coração do Senhor da Igreja; seu coração tem que bater com o dos outros.
Como substrato teológico, o diretor promoveu a memorização do Breve Catecismo, com um prêmio no final, dado por ele mesmo, Rev. Dr. Jame Woodson. Meu afã foi tão intenso, que em poucos dias sabia o livrinho na ponta da língua. Toda a classe reunida, ele perguntou: Quem está pronto a recitar o Breve Catecismo? Não me lembro bem, mas creio que eu fui o único aluno a pôr-se de pé e ir à frente. Trêmulo, gaguejante, cuja excitação me sufocava, recitei-o em público, para a classe, e depois para todo o IBEL. Ele fazia as perguntas e eu respondia. A coisa foi feita com tanta precisão, que arrancou aplausos de todos. Havia emoção nos rostos e olhos a marejar. Aquele moço matuto e desnorteado, de condição quase zero, fizera aquela façanha! Como prêmio, recebi das mãos do diretor, emocionados ele e eu, sob o olhar perplexo de todos, contagiando toda aquela santa assembléia, o livro Salmos e Hinos com músicas sacras, com a rubrica de próprio punho, com a data: 15 de junho de 1961, um dia após meu aniversário: 22 anos de idade. Eu o conservo íntegro, bem encadernado, até hoje. Foi nesse livro que aprendi os primeiros rudimentos da música sacra, cujos hinos mais tarde seriam entoados nas igrejas de meu pastorado e sob minha execução e regência. Conservo também aquele mesmo livrinho cujo conteúdo um dia memorizei para nunca mais esquecer. São dois símbolos preciosos que me acompanham como emblemas de meu modesto desenvolvimento nas lides da Igreja de nosso Senhor. Repetir essas coisas sempre me foi motivo de alegria, emoção e gratidão, de como o Senhor da Igreja nos conduz passo a passo na grande escalada da vida cristã. Ao recordar estas coisas tão especiais para mim é um castigo para meus pobres olhos os quais tenho esfregar vezes sem conta para estancar as lágrimas.
Depois de decorar e recitar o Breve Catecismo, costumo dizer que jamais poderia crer diferente. O livrinho moldou e determinou para sempre meu pensamento teológico. Dou-lhe valor máximo. Creio que, se toda igreja o ensinasse a partir da infância, aos novos crentes que se ingressam nas igrejas, aos oficiais, aos professores da Bíblia para toda idade, se todo ministro da palavra o soubesse de memória, o povo de Deus seria outro. Ao contrário disso, após jurar fidelidade à confissão de fé e catecismos, o ministro da palavra não só esquece que fez tal juramento diante de Deus e da igreja, mas cada um deles passa a ensinar o que quer e ainda declara, como fez um a mim há muito tempo, sem corar de vergonha, “que tenho eu com confissão de fé? Meu compromisso é com a Bíblia”. A verdade, a plena verdade, é bem outra: tal ministro não tem compromisso nem mesmo com a Bíblia, porquanto quem comete perjúrio dificilmente tem qualquer relacionamento com o Deus da Bíblia e da Igreja, e o que ele ensina no lugar não é de melhor qualidade; ao contrário, geralmente é de péssima qualidade. De antemão afirmo que jamais me desviei para outro caminho, nem nunca pensei ser isso necessário.
O IBEL tinha bem traçado um programa para os alunos, quer para fins de semana, quer para os períodos de férias. A cada fim de semana, todos saíam para algum canto a realizar algum programa em alguma igreja. Estive em várias igrejas da região em meus fins de semana. E fui para igrejas distantes em julho ou em dezembro a janeiro. Trabalhava com as crianças, com os jovens e com toda a igreja. Às vezes ia para uma grande igreja ajudar em alguma área dela; às vezes ia para uma pequena congregação. Era muito penoso tentar fazer o que ainda não dominava. Duas igrejas que me marcaram muito foram Lagoa Formosa e Paracatu. Muito embora fosse ainda muito “verde”, aquelas igrejas me receberam bem e me trataram acima do que eu merecia. Tudo aquilo era muito inusitado para mim, que até então vivera um mundo pequeno e mesquinho. Mas fazia parte da escola da vida e determinaria meu futuro como obreiro de Cristo.
Todos nós tínhamos um grande envolvimento com a igreja local. O pastor era o grande vulto de nome Saulo de Castro Ferreira. Era também nosso professor. Ouvir aquele homem me fazia um profundo bem à alma. Da igreja me lembro de poucas pessoas. Uma das marcas profundas foram meus atritos com um jovem líder da mocidade local, chamado Silas Brasileiro. É claro que o culpado dos atritos era eu mesmo, turrão e ignorante. Mas tenho uma grata lembrança daquele bom e nobre irmão. Creio que ele nem se lembra de mim. Ele tinha um irmão menor, garoto naquele tempo, chamado Roberto Brasileiro. Olhando para aquele garoto, quem de nós diria que ele seria o que é hoje? Há muitos anos ele passou a ser patrimônio não só do IBEL, como seu diretor, mas da própria IPB, como seu reiterado presidente. O quanto o presbiterianismo nacional deve a esse seu vulto tão eminente e fiel! Além do mais, pessoalmente o tenho como meu amigo. A despeito de sua grandeza, formando um agudo contraste com minha insignificância, ele nunca me discriminou, sempre me tratando com afeto e distinção. Dou graças a Deus por aquele predestinado garoto, pelo que o Senhor da Igreja fez dele, e cremos que ainda fará!
Foi ali no IBEL que ouvi pela primeira vez a menção da grande obra do Reformador João Calvino, as INSTITUTAS. Quando os veteranos comentaram entre si sobre este grandioso livro, e eu ali ouvindo aquele diálogo, então me acendeu um profundo interesse de lê-lo. Solicitei aos colegas que me mostrassem tal livro para que eu pudesse lê-lo. Todos se riram de minha ingenuidade, e responderam que esse livro não estava em nosso idioma. Horrorizado, perguntei: Como?! Não é possível que tal livro não esteja ao nosso alcance. Não é ele a obra prima do presbiterianismo? A partir de então meu coração sentia um profundo pesar por não poder compendiar as Institutas e pessoalmente conhecer o pensamento teológico do Reformador. Mau sabia que eu era o predestinado para fazer Calvino falar nosso idioma. Eu, um ibelino, o mais bronco de todos, estava destinado a fazer os brasileiros ler as obras de João Calvino. Se alguém ali profetizasse que eu seria tal homem, sem a menor sombra de dúvida que o chamaria de “falso profeta”.